Os exercícios quaresmais preparam a celebração da Páscoa do Senhor. Eles nos ajudam a concretizar o que disse o Senhor: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz, e me siga”. (Mt 16,24). A oração, a esmola e principalmente o jejum refletem esta negação de si mesmo, sobre a qual precisamos aqui meditar. A autonegação, mais do que um convite, é um dever e não diz respeito apenas ao pecado. Negar o pecado é o mínimo. Ela diz respeito à renúncia do usufruto do que nos é lícito, inocente. 3m2m5y
Nós temos a inclinação para o mal, especialmente por causa do pecado original e também pelos traços deixados pelos nossos pecados pessoais. Para não avançarmos nesta inclinação e para sermos justos, obedientes a Deus, verdadeiramente livres, precisamos, além de evitar o mal, alcançar o autodomínio, contrariando nossos desejos e inclinações ou impulsos naturais, nossos amores primários. Por isso, a conversão não significa apenas não pecar, deixar o roubo, a corrupção, a droga, a má vivência da sexualidade, etc. Isto é o mínimo que se espera. Se a conversão é uma mudança nos nossos corações, significa aprender a amar aquilo que naturalmente não amamos, ou seja, deixar de amar as coisas do mundo para amar a Deus e seus filhos. Assim, o jejum, um dos exercícios da quaresma, é uma abstinência do que é permitido, do que não é pecaminoso. Deixa-se de comer o que se poderia comer. Por exemplo: quando os pais dizem que seus filhos devem se abster de refrigerantes na quaresma, não é por que eles possam fazer mal que se faz a abstenção. Se eles fizessem mal, pelo mínimo não deveriam nunca ser consumidos. O mesmo se diz de abster-se de jogos e outras coisas lícitas vividas com moderação.
A autonegação de que pede Jesus e que os exercícios quaresmais propõem significa abraçar a cruz no modo como Ele fez, indo além da mera abstenção do pecado. É renunciar aquilo de que legalmente poderíamos desfrutar, como Jesus. De fato, “Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo Contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fl 2,6-8). Ele que é de natureza divina, participando da natureza humana, renunciou ao lícito, para ensinar-nos a vencer o fermento da maldade.
Negar a nós mesmos é um princípio vital. É que nós sabemos onde vamos parar quando não o fazemos. Conhecemos nossa fragilidade. É preciso tomar precaução, prevenindo-nos. Por exemplo, para não nos juntarmos aos comilões e beberrões, praticamos o jejum do que não é ruim nas comidas e bebidas; para não nos juntarmos aos pagãos, caindo na idolatria, intensificamos nossa vida de oração; para não cairmos na insensibilidade do egoísmo, praticamos a esmola. Não temos totalmente robusta e saudável nossa vida espiritual a ponto de não mantermos vigilância em relação ao excessivo amor próprio, à soberba, à arrogância. As comodidades podem facilmente nos corromper, podendo nos fazer confiar apenas em nós mesmos.
Para fazer a autonegação, assim sugere São John Henry Newman: “Façamos surdez aos elogios excessivos e mantenhamos firmeza diante das zombarias e ameaças do mundo. Dominemos nosso coração para contermos explosões de raiva, tristezas prolongadas e infrutíferas ou desabafos de ternura imprópria. Controlemos nossas línguas, desviemos nosso olhar para evitar a tentação. Mantenhamo-nos longe de ambientes que relaxem nossa disciplina e busquemos força nas práticas elevadas. Levantemo-nos para orar antes do amanhecer e procuremos nosso verdadeiro e único Amado durante a noite.” Assim é que a conversão acontece, como uma segunda natureza que se imprime em nós. É a vida na Graça. Carreguemos, pois, a cruz com Cristo.